Puerto Carreño: onde três países se encontram
Puerto Carreño: onde três países se encontram – uma aventura na fronteira que mudou a minha perspetiva sobre a América do Sul
Estava ali parado, com o telemóvel a 15% de bateria e sem sinal, olhando para aquela vastidão de água e terra que se estendia à minha frente. O GPS tinha-me trazido até ali, ao que parecia ser literalmente o fim do mundo… ou pelo menos o fim da civilização como a conhecia. Puerto Carreño, Colômbia. Para ser completamente honesto, não esperava muito desta paragem na minha rota pela América do Sul. Pensava que seria apenas mais uma cidade fronteiriça, daquelas que se atravessa rapidamente a caminho de algo mais interessante.
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Como me enganei.
A chegada inesperada – quando o GPS me levou ao fim do mundo (e não foi mau de todo)
A primeira coisa que me impressionou foi o silêncio. Não aquele silêncio urbano cheio de ruído de fundo, mas um silêncio genuíno, interrompido apenas pelo som da água a correr e pelo ocasional grito de uma ave que não conseguia identificar. Vinha de Bogotá, onde o trânsito é uma loucura constante, e de repente encontrava-me num lugar onde o ritmo das coisas seguia uma lógica completamente diferente.
O voo até Carreño tinha sido… interessante. Não há outra forma de descrever aqueles 45 minutos num avião pequeno que parecia ter visto melhores dias. Mas quando aterrámos naquele aeroporto minúsculo – que mais parecia uma pista de aterragem com uma cabana ao lado – percebi que estava prestes a viver algo diferente.
A primeira pessoa com quem falei foi o taxista, um senhor de uns sessenta anos que me cumprimentou com um sorriso que ocupava metade da cara. “Primera vez en Carreño?” perguntou-me, e quando confirmei, riu-se. “Ah, entonces no sabes lo que te espera.” Não sabia se isso era bom ou mau sinal.
Durante os quinze minutos de viagem até ao centro (se é que se pode chamar centro àquilo), fui percebendo a geografia única do lugar. Estávamos na confluência de três países – Colômbia, Venezuela e Brasil – unidos pelos rios Orinoco e Meta. Não é todos os dias que se pode literalmente apontar para três países diferentes da mesma varanda.
O que mais me marcou naqueles primeiros momentos foi a sensação de estar num lugar onde o tempo funciona de forma diferente. As pessoas movem-se devagar, não por preguiça, mas porque aqui faz sentido saborear cada momento. Vêm-se grupos de homens sentados à sombra, conversando sobre não sei bem o quê, crianças a brincar na rua sem pressa de ir para lado nenhum, mulheres que param para conversar no meio da rua como se fosse a coisa mais natural do mundo.
Instalei-me no primeiro hotel que encontrei – na verdade, não havia assim tantas opções – e foi aí que tive a minha primeira grande surpresa. Da janela do meu quarto, conseguia ver literalmente três países. Não é metáfora, é geografia pura. Ali estava eu, a olhar para a Venezuela do lado esquerdo, o Brasil do lado direito, e os meus pés firmemente plantados em solo colombiano.
Nessa primeira noite, enquanto tentava conectar-me ao Wi-Fi (que funcionava quando queria), percebi que tinha chegado a um lugar especial. Não especial no sentido turístico tradicional – não há monumentos históricos grandiosos ou praias de postal – mas especial no sentido humano. Um lugar onde três culturas se misturam naturalmente, onde as fronteiras são mais uma formalidade administrativa do que uma barreira real.
Navegando pelas três fronteiras – o guia prático que gostava de ter tido
Vou ser direto: navegar pelas burocracias de três países numa manhã pode ser uma experiência… educativa. Aprendi isto da pior maneira possível, claro.
Os documentos que realmente precisas (e os que pensas que precisas)
Na minha primeira tentativa de “turismo fronteiriço”, levei comigo uma pasta cheia de documentos que achava que poderiam ser úteis. Passaporte, obviamente. Certificado de vacinas (que acabou por não ser pedido). Seguro de viagem impresso em três línguas (desnecessário). Até levei uma cópia autenticada do certificado de nascimento, porque nunca se sabe, não é?
A realidade é muito mais simples. Para entrar na Venezuela desde Puerto Carreño, precisas apenas do passaporte e de pagar uma taxa de 2 dólares americanos – e sublinho americanos, porque tentei pagar em pesos colombianos e a funcionária olhou para mim como se eu tivesse sugerido pagar em conchas do mar.
Para o Brasil, a situação é ainda mais relaxada se fores cidadão português. O passaporte basta, sem taxas adicionais. O posto fronteiriço fica a cerca de 20 minutos de barco de Puerto Carreño, numa pequena povoação chamada Isla de Zapara, que tecnicamente fica em território brasileiro mas que toda a gente trata como se fosse uma extensão natural de Carreño.

O que ninguém me disse (e que gostava de ter sabido) é que os horários dos postos fronteiriços são… flexíveis. Oficialmente funcionam das 8h às 17h, mas na prática isso pode variar dependendo do humor dos funcionários, do estado do tempo, ou se há um jogo importante na televisão. Aprendi isto quando cheguei às 16h45 de uma quinta-feira e encontrei o posto fechado porque o funcionário tinha ido “resolver um assunto urgente”.
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Câmbio de moeda – a dança dos três países
Aqui é onde as coisas ficam interessantes, e por interessantes quero dizer potencialmente caras se não prestares atenção. Em Puerto Carreño circulam três moedas: peso colombiano, bolívar venezuelano e real brasileiro. A maioria dos comerciantes aceita as três, mas as taxas de câmbio… bem, digamos que são criativas.
A melhor estratégia que encontrei foi levar dólares americanos. Toda a gente os aceita, toda a gente os quer, e consegues taxas muito mais justas. Há uma casa de câmbio na rua principal (é difícil perder, é literalmente a única rua com movimento) onde um senhor chamado Carlos me deu uma taxa 20% melhor do que qualquer outro sítio.
Mas aqui vai a dica de ouro: se planeias fazer compras na Venezuela, leva efectivo. O sistema bancário venezuelano é… complicado, e muitas vezes os terminais de pagamento não funcionam. No Brasil, pelo contrário, até os vendedores de rua têm PIX (o sistema de pagamento instantâneo brasileiro), o que é uma maravilha.
Uma coisa que me surpreendeu foi descobrir que muitos preços são cotados em dólares, mesmo quando pagas noutra moeda. Um almoço que custa “5 dólares” pode ser pago com 25.000 pesos colombianos, 20 reais brasileiros, ou o equivalente em bolívares venezuelanos (que muda praticamente todos os dias).
A vida no rio – Puerto Carreño além da geografia
Depois de resolver as questões burocráticas e monetárias, finalmente pude concentrar-me no que realmente importava: perceber como é que se vive num lugar onde três países se encontram.
A primeira coisa que notei foi como o rio domina completamente a vida local. O Orinoco não é apenas uma fronteira geográfica; é a estrada principal, o supermercado, o parque de diversões e às vezes até a sala de estar da comunidade. Vi famílias inteiras a passar tardes inteiras nas margens, crianças a brincar na água enquanto os adultos pescavam e conversavam.
Decidi alugar uma pequena embarcação para explorar melhor a região. O barqueiro, um homem chamado Miguel que parecia conhecer cada pedra do rio, tornou-se o meu guia improvisado. “Aqui não há pressa”, disse-me enquanto navegávamos lentamente pelo Orinoco. “O rio ensina-nos a ir devagar.”
Durante essa primeira viagem fluvial, comecei a perceber a complexidade cultural do lugar. Numa margem, ouvia-se música llanera colombiana; na outra, samba brasileiro. Os pescadores venezuelanos cumprimentavam os colombianos como se fossem vizinhos de bairro – que, de certa forma, são.
A gastronomia local é uma fusão fascinante. Numa mesma refeição podes ter arepa venezuelana, farofa brasileira e sancocho colombiano. Experimentei tudo, claro. A arepa estava deliciosa, a farofa… bem, digamos que é um gosto adquirido, e o sancocho foi uma revelação. Há um restaurante pequeno perto do porto – não tem nome, toda a gente lhe chama “o restaurante da Doña María” – onde a comida é preparada com ingredientes dos três países.
O que mais me impressionou foi a naturalidade com que as pessoas transitam entre culturas e idiomas. Numa conversa de cinco minutos, ouvi espanhol, português e até algumas palavras em línguas indígenas locais. As crianças brincam juntas independentemente da nacionalidade, e os adultos fazem negócios atravessando fronteiras como se fossem ruas.
Uma tarde, enquanto esperava o barco para regressar ao hotel, presenciei uma cena que resumiu perfeitamente o espírito do lugar. Um grupo de músicos – uns colombianos, outros venezuelanos – estava a tocar na praça principal. Não era um espetáculo organizado, era simplesmente música a acontecer. As pessoas paravam, ouviam, algumas dançavam, outras juntavam-se com os seus próprios instrumentos. Durante duas horas, aquela pequena praça transformou-se numa celebração espontânea de três culturas diferentes que, ali, eram uma só.
Onde ficar e como não falir no processo
Vou ser honesto: as opções de alojamento em Puerto Carreño não são exatamente variadas. Não esperes encontrar resorts de cinco estrelas ou hostels modernos com Wi-Fi de alta velocidade. O que encontras são lugares simples, limpos e com muito carácter.
Inicialmente, como bom turista inexperiente, dirigi-me ao hotel mais caro que consegui encontrar online. O Hotel Orinoco, que se apresentava como “o mais luxuoso de Puerto Carreño”. Luxuoso é uma palavra muito relativa aqui. Por 80 dólares por noite, tive direito a um quarto com ar condicionado que funcionava quando queria, água quente intermitente e Wi-Fi que era mais uma promessa do que uma realidade.
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Depois de duas noites de luta com a tecnologia (ou falta dela), mudei-me para a Posada El Encuentro, uma pequena pousada familiar a três quarteirões do rio. Por 25 dólares por noite, tive um quarto simples mas confortável, pequeno-almoço incluído, e o mais importante: a Señora Carmen, a proprietária, que se tornou a minha fonte de informação local mais valiosa.
A Posada El Encuentro não tem ar condicionado, mas tem ventiladores de teto que fazem o trabalho perfeitamente. Não tem Wi-Fi no quarto, mas tem uma área comum onde a ligação funciona razoavelmente bem. E não tem serviço de quarto, mas tem a Señora Carmen, que todas as manhãs preparava um pequeno-almoço com frutas locais que eu nunca tinha visto na vida.
Para quem tem orçamento ainda mais apertado, há algumas opções de alojamento familiar onde podes ficar por 10-15 dólares por noite. São quartos básicos em casas de família, mas a experiência cultural vale muito mais do que o dinheiro poupado. Fiquei uma noite numa dessas casas e foi aí que aprendi a fazer arepa da forma tradicional e ouvi histórias sobre a vida na fronteira que nenhum guia turístico conta.
Uma nota importante sobre reservas: não te preocupes demasiado em reservar com antecedência, a menos que visites durante algum festival local. Puerto Carreño não é exatamente um destino turístico saturado, e geralmente há sempre um quarto disponível em algum lugar.
A experiência gastronómica – entre acertos e… bem, experiências
A comida em Puerto Carreño é uma aventura em si mesma. Como disse, é uma fusão de três tradições culinárias, o que pode resultar em pratos absolutamente deliciosos ou em… experiências educativas.
O meu primeiro grande acerto foi o pescado a la plancha no restaurante da Doña María. Peixe fresco do rio, grelhado na perfeição, acompanhado de patacones (banana-da-terra frita) e uma salada simples mas saborosa. Custou-me 8 dólares e foi uma das melhores refeições que fiz na América do Sul.
O meu primeiro grande erro foi tentar ser aventureiro demais. Num pequeno restaurante venezuelano, pedi um prato cujo nome não conseguia pronunciar. Chegou-me à mesa algo que parecia uma sopa mas com uma textura… interessante. Tentei comer, tentei mesmo, mas houve um momento em que tive de admitir a derrota. A empregada riu-se quando viu a minha cara e explicou-me que era um prato tradicional feito com vísceras de peixe. “Es muy nutritivo”, disse-me. Tenho a certeza de que era, mas o meu estômago de turista não estava preparado.
Uma descoberta inesperada foi o pequeno-almoço brasileiro na Isla de Zapara. Pão de açúcar fresco, café forte, queijo local e uma variedade de frutas tropicais que custaram apenas 3 dólares. O café, em particular, era extraordinário – muito melhor do que muitos que provei em cafés especializados em grandes cidades.
Para quem tem restrições alimentares, a vida pode ser um pouco complicada. A maioria dos pratos locais contém peixe ou carne, e as opções vegetarianas limitam-se basicamente a arroz, feijão e frutas. Mas se fores flexível e comunicativo, os cozinheiros locais são geralmente muito prestáveis em adaptar os pratos.
Uma dica importante: cuidado com a água. Embora a maioria dos restaurantes use água filtrada, é melhor beber sempre água engarrafada. Aprendi isto da forma menos agradável possível no meu segundo dia, quando passei uma manhã inteira a fazer amizade com a casa de banho do hotel.
O que fazer quando três países não são suficientes
Depois de alguns dias a adaptar-me ao ritmo local, comecei a explorar as atividades disponíveis. E aqui está a coisa: Puerto Carreño não é um destino de turismo de massas com uma lista interminável de atrações. É um lugar onde as atividades surgem naturalmente da própria geografia e cultura do local.
Atividades que valem mesmo a pena
A observação de aves tornou-se rapidamente a minha obsessão. A região é um paraíso para os amantes da ornitologia, com mais de 300 espécies diferentes. Contratei um guia local, o Sr. Roberto, que conhecia os hábitos de cada ave como se fossem velhos amigos. Passámos uma manhã inteira numa pequena ilha no meio do Orinoco, e consegui fotografar espécies que nunca tinha visto: garças brancas enormes, tucanos coloridos, e um tipo de águia que Roberto chamava “reina del río”.
As excursões fluviais são obrigatórias. Não apenas para atravessar fronteiras, mas para perceber realmente a dimensão do lugar. Numa tarde, fiz uma viagem de três horas que me levou por territórios dos três países. Vimos jacarés (a uma distância segura), golfinhos cor-de-rosa (sim, existem mesmo), e paisagens que mudavam completamente a cada curva do rio.
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Uma experiência que não esperava foi a visita a uma comunidade indígena local. O Sr. Roberto organizou tudo, e passámos uma tarde com uma família da etnia Sikuani, aprendendo sobre as suas tradições e a sua relação com o rio. Foi uma experiência profundamente humilde e educativa, que me fez perceber o quanto ainda há para aprender sobre as culturas locais.

O turismo responsável que aprendi a praticar
Inicialmente, como muitos turistas, a minha primeira preocupação era conseguir as melhores fotos para o Instagram. Mas rapidamente percebi que Puerto Carreño ensina-nos uma lição importante sobre turismo responsável.
A região enfrenta desafios ambientais sérios. As mudanças climáticas estão a afetar os padrões de chuva, o que por sua vez afeta a vida no rio. Os níveis de água variam drasticamente entre estações, e isso tem impacto direto na vida das comunidades locais.
Aprendi a viajar de forma mais consciente. Em vez de exigir comodidades urbanas num ambiente rural, adaptei-me ao que estava disponível. Em vez de me queixar da falta de Wi-Fi, aproveitei para desconectar realmente. Em vez de procurar experiências “instagramáveis”, procurei experiências genuínas.
Uma das coisas mais importantes que aprendi foi a importância de apoiar a economia local de forma responsável. Isso significa comer em restaurantes familiares em vez de cadeias (que aqui nem existem), comprar artesanato diretamente dos artesãos, e escolher guias locais em vez de operadores turísticos externos.
Também me tornei mais consciente do meu impacto ambiental. Carreguei sempre uma garrafa de água reutilizável, evitei produtos descartáveis sempre que possível, e certificei-me de que todo o lixo que produzi foi devidamente eliminado.
Reflexões finais – porque Puerto Carreño ficou na minha lista de “voltar sempre”
Enquanto escrevo estas linhas, já passaram três meses desde que deixei Puerto Carreño, e ainda penso naquele lugar todos os dias. Não porque tenha sido a viagem mais luxuosa ou mais aventureira da minha vida, mas porque foi a mais transformadora.
Puerto Carreño ensinou-me que as fronteiras são construções humanas, mas as conexões são universais. Vi famílias que vivem literalmente em países diferentes mas que se encontram todos os domingos para almoçar juntas. Vi comerciantes que fazem negócios em três moedas diferentes mas que se tratam com a confiança de velhos amigos. Vi crianças que brincam em três idiomas diferentes mas que se entendem perfeitamente.
Mais do que isso, Puerto Carreño ensinou-me a abrandar. Numa época em que estamos constantemente conectados, constantemente ocupados, constantemente a correr atrás do próximo destino, aquele pequeno lugar na confluência de três países mostrou-me o valor de simplesmente estar presente.
A melhor época para visitar é durante a estação seca, entre dezembro e março, quando os níveis dos rios estão mais baixos e é mais fácil navegar. Mas honestamente, cada estação tem o seu charme. A estação das chuvas traz uma exuberância verde incrível, e a vida selvagem fica mais ativa.
Se estás a pensar visitar Puerto Carreño, vai com expectativas abertas. Não esperes luxo, não esperes eficiência urbana, não esperes Wi-Fi de alta velocidade. Espera autenticidade, espera hospitalidade, espera uma experiência que te vai mudar a perspetiva sobre o que realmente importa numa viagem.
E quem sabe? Talvez também acabes como eu, a planear secretamente o regresso a este pequeno canto do mundo onde três países se encontram e onde aprendi que as melhores viagens não são aquelas que nos levam mais longe, mas aquelas que nos trazem mais perto de nós próprios.
Esta é apenas a minha experiência pessoal, e as situações podem mudar com o tempo. Puerto Carreño é um destino em evolução, e cada visitante terá a sua própria aventura única.
Sobre o autor: João dedica-se a partilhar experiências reais de viagem, dicas práticas e perspetivas únicas, esperando ajudar os leitores a planear viagens mais relaxantes e agradáveis. Conteúdo original, escrever não é fácil, se precisar de reimprimir, por favor note a fonte.